Bauman ou
o humanismo em estado puro
Zygmunt Bauman (1925 – )
Tantas pessoas capacitadas escrevendo sobre Bauman,
debatendo suas ideias, comprando seus livros (mais de 300 mil foram vendidos só
no Brasil), adotando seus conceitos sobre a fluidez que permeia as relações
atuais, mas ele – com a lucidez de um sábio, como aqueles que moram em
montanhas altíssimas – nem de longe se deixa cair nas armadilhas do autoelogio
e continua, aos quase 90 anos, sendo um farol bem potente que ilumina os muitos
abismos desse nosso ‘teatro’ pós- moderno. Mas porque suas ideias explicam de
forma tão exata os muitos paradoxos nos quais nos envolvemos – quer queiramos,
quer não – hoje em dia?
Já li tantos artigos (bons) sobre Bauman que quase
desisti da ideia de escrever esse, mas como acredito no bem estar que a
pluralidade de debates pode gerar resolvi levar adiante esse desejo, motivada,
sobretudo, pela entrevista que ele concedeu recentemente ao jornalista Alberto
Dines (do Observatório da
Imprensa).
Assistindo a conversa dos dois fiquei pensando em porque Bauman se tornou essa
figura tão popular e querida tanto por intelectuais e acadêmicos, quanto por
leitores que já passaram dessa etapa, mas buscam em seus textos explicações
sobre os males pós-modernos (ou simplesmente os males humanos e atemporais que
vão nos afligindo ao longo da vida).
Assim, impulsionada pelas falas de gente que o vê
de uma maneira mais intelectualizada e/ou recoberto por seus certeiros
conceitos sobre todas as grandes e pequenas aberrações que formam a tal
pós-modernidade (termo que parece desagradar a muitos) tentei retirar dessa
mistura algo que chamarei, de forma despretensiosa e limitada, de ‘essência
humana’; algo que resplandece em suas reflexões e que talvez explique esse seu
grande ‘sucesso’.
Sim, sei que sucesso é uma palavra que lembra
coisas como celebridades, fama instantânea e alguns outros brilhos fugazes que
envolvem tudo que é produzido pela indústria do entretenimento, mas Bauman está
a anos luz disso tudo, pois é professor universitário e não celebridade
‘roliudiana’; ele e suas ideias, que ele mesmo nem acha assim tão contundentes
– ao contrário de alguns pensadores semanais que vemos lançando ‘bombas’ sobre
isso e aquilo e que desaparecem num instante –, ele e sua seriedade nada
lisonjeira e bastante normal para um sociólogo que gosta do que faz e tenta,
incansavelmente, apontar caminhos para quem tiver disposição de ouvir/ler seus
muitos livros. (Quando pensamos, por exemplo, na onda do politicamente correto
que parece ter recoberto tudo – até a arte, essa área que não deveria se curvar
a tais limites – com uma espécie de cinza niveladora que transforma em porcaria
tudo sobre o qual recai; vemos porque seu trabalho chegou em boa hora e é cada
vez mais necessário: é que ele não tenta agradar ninguém e somente segue,
destrinchando os bastidores desse nosso, farto em bizarrices, sistema social).
Sobre a tal ‘cinza niveladora’, ouso pensar até que
ele talvez seja uma espécie de ‘guru’ que surgiu nessa fase do tempo
infinito (tempo e não somente a pós-modernidade; tempo visto como um
contínuo incessante que é sempre ilusório e que limita qualquer tentativa de
reflexão mais elaborada porque condiciona nossos pensamentos/ações em qualquer
‘tempo’) como aquele que conseguiu ver no rastro de pó desse tempo, alguns
detalhes que escaparam a outros pensadores e entre tais ‘detalhes’ lá estava a
razão de tudo: o homem, esse ‘instrumento’ tantas vezes esquecido e ignorado
por aqueles que analisam (como diz ele) o ‘gerenciamento do mundo’.
Acho que a capacidade de enxergar primeiramente ‘o
humano’ é que transformou Bauman em pensador indispensável para esses nossos interessantes
tempos, tempos, aliás, que ele afirma serem bênçãos para os ‘solidários e
pensantes’ e péssimos para aqueles que não têm essas, digamos, virtudes. Li em
algum lugar que alguns acham Bauman pessimista e talvez, saudosista, porque,
por exemplo, não vê com bons olhos a onda tecnológica na qual estamos todos
envolvidos e que transformou alguns de nós (até as crinças) em seres que só se
entendem como humanos, quando conectados (ou seja, quando estão
distantes da realidade real e imersos na virtual; bem louco isso, não?). Sua
visão ácida do reino da alegria que é o facebook também já se tornou
clichê, mas é importante notar que seu pensamento sobre as tais redes sociais
continua tão pertinente que acabou sendo adotado por outros pensadores e no
final, nós como usuários das tais redes, já percebemos (?) o quanto esse
ambiente é quase sempre, carregado de hipocrisia (a nossa e a dos ‘outros’
logicamente). Mas eu penso é que cada um transfere para cá o que é ‘lá fora’,
simples assim.
Sobre a velocidade das notícias Bauman (citando
alguém) diz que somos ‘inundados por informação, mas famintos por sabedoria’:
não sei quanto a vocês, mas me sinto exatamente assim desde que o avanço
tecnológico que possibilitou a internet e todos os seus desdobramentos
revolucionários foi ganhando corpo ali em meados do começo do século (e que
estranho é escrever isso: começo do século).
O fato é que, tecnologicamente, avançamos de forma
surpreendente: há 30 anos se um visionário europeu ou norte-americano (são
sempre eles, não?) dissesse, por exemplo, numa entrevista ao ‘fantástico’ Fantástico
(é que houve um tempo em que esse programa era melhorzinho e era somente o que
havia) que algum dia haveria a possibilidade – via computador e telefone – de
se falar com pessoas que estão fisicamente distantes certamente seria tachado
de louco, para dizer o mínimo.
Pois avançamos: tantos estudos foram feitos por
pessoas que nunca saberemos quem foram – porque quando se divulgam ‘coisas’
revolucionárias geralmente os nomes daqueles que trabalham nos bastidores não
são destacados – tantas pesquisas meticulosas nos trouxeram a essa modernidade
recheada de facilidades cotidianas tão sensacionais que deveríamos sermos todos
agradecidos e legais uns com os outros, não é mesmo? (Mas então, porque será
que não somos?)
Ah, mas se fôssemos assim tão legais, não usaríamos
o face (nada mais que um tranquilizante cerebral, segundo Bauman)
para mostrarmos nossas conquistas (estéticas, profissionais, acadêmicas,
amorosas e etc.) publicamente, carentes que somos de afagos em nossos egos.
Também seríamos altruístas e solidários, mas se assim fosse, viveríamos numa redoma
utópica e o mundo seria tão perfeito e maravilhoso que talvez morrêssemos… de
tédio…
Somos imperfeitos e andamos por um imenso, e até
agora infindável, corredor de espelhos chamado ‘zona de conforto’ (segundo ele)
e só nos envolvemos de verdade em algo, se estivermos bem confortáveis em
nossas poltronas macias e vendo o caos no Oriente Médio ou em alguma periferia
brasileira na tela da TV, do PC ou do celular. Nos tornamos sedentários mas
certamente sairemos do sofá para comer ou ir de carro para algum lugar
agradável; viajaremos para outros países mas veremos somente o que a indústria
do turismo permitir (e isso tudo é uma crítica a mim mesma). No final, a
pergunta que ecoa é: evoluímos tecnologicamente, mas e humanamente? Alguns
poucos certamente conseguiram avançar, mas a grande maioria patina embasbacada
(e alienada) pelas variadas facilidades que a pós-modernidade nos trouxe (que
vão durar enquanto tivermos meio ambiente para sustentar tudo isso).
Sem me alongar mais – porque isso não tem nem terá
fim – tentando não ser tão pessimista (mas obviamente, não conseguindo) convido
você a assistir a entrevista de Bauman porque a mim me deixa muito feliz (de
verdade) pensar que existe aqui entre nós uma pessoa como ele: disposta a
observar o mundo por um viés que humaniza a ‘administração’ desse mundo e que
procura desvendar os bastidores desse nosso sistema social sobretudo, com
sensibilidade. Um estudioso que para além das estatísticas, enxerga pessoas;
que consegue simplificar o entendimento das intrincadas relações humanas
modernas propondo conceitos delicados e quase poéticos que traçam paralelos
entre a fluidez e da água e a ‘liquidez’ das relações descompromissadas que
vamos construindo.
Para terminar: acho que Bauman se tornou esse
‘farol’ porque por meio de suas abordagens amplas que, no entanto, permitem que
enxerguemos todos os detalhes, faz com que a gente entenda os aspectos sórdidos
do mundo – as desigualdades sociais, o desemprego, a miséria, os variados
preconceitos, as nunca esclarecidas questões econômicas que geram tantas
politicagens e mesquinharias e que aniquilam a vida de tantos – pois vemos tudo
isso, de uma forma, é claro, desagradável; mas a sensibilidade de sua
sociologia também mostra que este caos é, na verdade, bastante organizado. Ao
mirar seu refletor para os cantos mais obscuros e longínquos do que se
convencionou chamar ‘pós-modernidade’ ou esse espetáculo humano do qual somos
autores, atores principais e coadjuvantes, figurantes, espectadores,
maquiadores, produtores e etc. Zygmunt Bauman nos oferece a oportunidade da
reflexão sobre o nosso desempenho e talvez seja possível ainda, revisar esse
roteiro…Quem sabe?
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