José Sócrates, ex-premiê de
Portugal: “O que acontece no Brasil é um golpe político da direita”
Ex-premiê de Portugal opina que o impeachment de
Dilma é “uma vingança política”
Corresponsal
en Lisboa
Lisboa 10 ABR 2016 -
21:19 CEST
José
Sócrates governou Portugal de 2005 a 2011. Inicialmente, foi o único
primeiro-ministro socialista a obter maioria absoluta em eleições, mas a partir
de 2009 governou em minoria, até aceitar a intervenção da troika composta por
Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional e ser
substituído por uma coalizão de centro-direita, dos partidos PSD e CDS.
Mudou-se para Paris e, em novembro de 2014, foi detido ao desembarcar em Lisboa. Passou nove
meses preso, mais algum tempo em prisão domiciliar, e agora espera que o
Ministério Público apresente alguma acusação formal contra ele. A investigação,
iniciada há três anos e meio, é sobre supostos crimes de corrupção, fraude
fiscal e lavagem de dinheiro.
Pergunta.
Como está o processo?
Resposta. A pergunta já diz tudo. Deveríamos estar a
discutir sobre fatos e provas, infelizmente se discute quanto tempo mais
precisam para investigar. Depois de 16 meses da minha detenção, [não há] nem fatos, nem
provas, nem acusação. Quem deveria responder é o procurador que tem descumprido
todos os prazos legais. Agora a Procuradoria-Geral anuncia que o novo prazo
para apresentar a acusação ou encerrar o caso termina em 15 de setembro, mas
adverte que se for preciso o ampliará.
P. O senhor passou nove meses na
prisão sem acusação?
R. Sem acusação e sem acesso ao
sumário. Não há um caso similar em nenhum país europeu, em nenhuma democracia
ocidental, de alguém que passe nove meses encarcerado sem acusação. Detêm um
ex-primeiro-ministro, imputam-lhe delitos ignominiosos, e um ano e meio depois
não são capazes nem sequer de apresentar a acusação. Os mesmos encarregados de
fazer justiça saltaram todas as regras do direito processual. Só um ano depois
da detenção meus advogados tiveram acesso ao sumário, graças a uma reclamação
ao Tribunal Tutelar.
P. Parece que será acusado de
fraude fiscal, lavagem de dinheiro e corrupção.
R. Sim, está na moda. A acusação de
corrupção se transformou no instrumento jurídico para a destruição política;
antes, para eliminar um político acusavam-no de atentar contra a segurança do
Estado. O golpe de força moderno é a falsa acusação de corrupção.
Não são necessários fatos nem provas, basta acusar para que tenha o efeito de
um assassinato político.
Não há um caso similar em nenhum país europeu, em
nenhuma democracia ocidental, de alguém que passe nove meses encarcerado sem
acusação
P. E teve efeito?
R. O objetivo era impedir minha
candidatura à presidência do país e que o Partido Socialista não ganhasse as eleições.
Conseguiram os dois.
P. Durante seus meses na prisão,
esperava um maior apoio do PS?
R. Nunca me senti verdadeiramente
só; conseguiram intimidar a direção do PS, mas não os seus militantes. De certa
forma, estou contente de que a direção do PS ficasse afastada, porque há
batalhas que é preciso ganhar sós, e esta é uma delas.
P. Embora o sumário seja secreto,
sabemos bastante pelos vazamentos à imprensa marrom: conversas telefônicas,
viagens do seu motorista, conexões na Suíça, Angola, Brasil…
R. Sim, em outro fato insólito, o
investigador-chefe do caso apresentou uma denúncia pelos vazamentos e observou
que só podiam partir do procurador ou do juiz de instrução. Parece que o
Ministério Público não tem consciência de que, com estes procedimentos, se está
transformando em uma máquina sinistra que promove a culpabilidade pública
através da imprensa marrom, em lugar de velar pela presunção de inocência;
provoca a condenação popular antes de qualquer julgamento. O procurador não
precisa apresentar provas, disso se encarrega a imprensa sensacionalista.
P. Seu caso coincide no tempo com o
de Lula no Brasil. Inclusive foram recordados os
encontros entre vocês [coincidiram sete anos no poder]
R. Até o comparecimento de Lula na
apresentação de meu livro agora parece delituoso. Mas é curioso o paralelismo;
como em meu caso, houve detenção abusiva e querem julgamentos populares sem
possibilidade de defesa; o que ocorre no Brasil é uma tentativa de destituição
sem delito, sem fundamento constitucional. O impeachment de Dilma Rouseff é uma vingança
política da direita, que não aceita a derrota nas urnas. Não basta fazer
acusações, é preciso fazer julgamento; condenar alguém sem direito a defesa
acontece no Brasil e em Portugal, condenar sem julgar; destituição sem delito e
sem fundamento. É um golpe político da direita, porque agora não mobilizam os
militares; é impedir a candidatura de Lula à presidência de 2018. É utilizar a
Justiça para condicionar eleições.
P. Lá também vazaram à imprensa
conversas telefônicas entre Lula e Dilma, mas o juiz reconheceu que foi ele.
R. E? O juiz cometeu um delito;
pedir perdão não o exime da culpa. A legitimidade de um juiz se baseia na
imparcialidade, com esse gesto a perdeu. Já não o vejo como um juiz, mas como
um ativista político.
P. Na sua ausência, sem um
candidato socialista forte, o peculiar Marcelo Rebelo da Sousa arrasou nas presidenciais
de Portugal. Qual sua opinião?
R. Nunca me agradou seu interesse
em querer contentar a todos. O presidente Marcelo sempre foi um personagem em
busca de seu papel político. E o descobriu finalmente, o papel dos afetos, eixo
de todo um novo programa político. Por outro lado, vejo o alvoroço diário de
sua presidência como uma necessidade de querer sublimar a frustração por ter
sido afastado da política durante 20 anos.
P. O senhor deixou o Governo de
Portugal em 2011 quando chegou a troika para aplicar o programa de resgate
financeiro do país com o remédio da austeridade. Como estão Portugal e a Europa
cinco anos depois?
R. Os anos de aplicação da política
de austeridade, entre 2010-2015, foram terríveis porque deixaram um rastro de
pobreza e aumentaram as desigualdades sociais. Agora estamos a adotar, na
Europa, a mesma política que os Estados Unidos aplicaram em 2008, a expansão
monetária, mas naquela altura, a direita do norte europeu dizia que queríamos
“dinheiro fácil”.
P. E quem decide se é hora do
dinheiro fácil ou não?
R. Esse é o problema, não sabemos;
as pessoas que tomam as decisões político-financeiras não têm de prestar contas
a um parlamento; estão à parte do debate político; são tecnocratas que dão tudo
aos apartos burocráticos que representam porque não são nada fora deles. É o
Governo de ninguém: ninguém o exerce, ninguém é responsável e ninguém pode ser
responsabilizado. Há um déficit democrático em todas as decisões econômicas
europeias. A liderança política foi substituída por uma máquina burocrática que
não responde a ninguém. É um problema sério da Europa.
P. Estamos vivendo a desconstrução
europeia?
R. Para quem viu no projeto europeu
o ideal político de sua geração são tempos de grande desilusão. A impressão que
se tem é a de um projeto que, em vez de avançar, retrocede. A chegada de
refugiados ergue fronteiras; a luta contra o terror consegue fazer com que, na
França, o presidente queira retirar a cidadania de seus cidadãos; na Dinamarca
acreditam-se no direito de confiscar os bens dos refugiados que o direito
internacional obriga a acolher. O projeto europeu fundamentado nos direitos
humanos parece desmoronar com a primeira crise.
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